quarta-feira, 22 de junho de 2016

Sistemas Aquosos Bifásicos


1. SABs

Nos últimos anos, têm adquirido importância e crescente êxito na biotecnologia de isolamento e separação de proteínas, os sistemas aquosos bifásicos (SABs), que se formam ao misturar-se dois polímeros de cadeia flexível (PCF) ou um polímero de cadeia flexível e um sal como o fosfato de potássio. Nesses sistemas, as proteínas se distribuem  entre as duas fases aquosas de acordo com um coeficiente de distribuição que se define como: 



onde [Pt] e [Pb] são suas concentrações na fase superior e inferior respectivamente. O coeficiente de distribuição depende de uma série de variáveis experimentais: pH, temperatura, presença de sais, peso molecular e concentração do PCF, hidrofobicidade e tamanho da proteína, entre outras. Mediante o controle dessas variáveis, é possível fazer com que uma proteína contida em um mistura complexa seja transferida para uma das fases, mantendo as proteínas não desejadas na fase oposta (Figura 1). 

  Figura 1 - Sab utilizado para separar pectinases de um extrato bruto. Note os esporos na interface.
 

A separação espontânea, em fases distintas, devido à adição de soluções aquosas de dois polímeros foi inicialmente observada pelo microbiologista holandês Beijerinck, em 1956, ao misturar ágar com gelatina ou amido solúvel. A fase inferior era rica em ágar e a superior em gelatina (ou amido). Em 1956, Albertsson constatou que sistemas formados por polímeros solúveis e solventes orgânicos também possibilitam a partição de materiais biológicos, ou seja, permitiam que uma terceira substância introduzida no sistema fosse coletada, preferencialmente, numa das fases por ajuste de parâmetros físico-químicos.
A extração de biomateriais usando sistemas aquosos bifásicos é, portanto, uma ferramenta poderosa na separação e análise de partículas biológicas pois fornece uma técnica de separação simples, facilmente dimensionável, energeticamente eficiente e suave para a recuperação de produtos em biotecnologia.A técnica está ilustrada na Figura 2.

Figura 2 - Extração em Batelada Utilizando SABs
 Fonte: Carlos Bispo

Algumas características desses sistemas fazem com que sejam particularmente adequados para a separação de misturas de moléculas de origem biológica: ambas as fases são ricas em água, constituindo um ambiente não agressivo a tais moléculas; a tensão interfacial é pequena, facilitando a transferência de solutos entre as fases, e a diferença de hidrofobicidade entre as fases é pequena e dependente da concentração, o que permite a manipulação dos sistemas de maneira a possibilitar a separação de moléculas semelhantes.
 Trabalhos realizados com sistemas bifásicos aquosos têm obtido resultados satisfatórios na purificação de biomoléculas e estão se tornando cada vez mais importantes. Além de biomoléculas, há também estudos da utilização de  SABs para recuperação de íons complexos, como o nitroprussiato e o pentassioanonitrosiocromato,  o que ilustra a versatilidade desta técnica.
Apesar da intensa aplicação em escala laboratorial para purificação de enzimas e proteínas, não alcançaram ampla aplicação comercial, tendo talvez como possíveis causas o custo dos polímeros formadores das fases e/ou o comportamento complexo (inúmeras variáveis interferindo de forma cinegética ou antagônica) de partição apresentados nestes sistemas bifásicos. Além disso, para sua aplicação sistemática, é necessária maior compreensão dos fatores que determinam sua formação e a partição de solutos específicos.

2. Diagramas de fases
 
Os componentes de um SAB podem ser dois polímeros diferentes (por exemplo: PEG e dextrana) ou um polímero e um soluto de baixa massa molecular (um sal, como o fosfato de potássio). Na mistura destas substâncias com a água, só irá ocorrer um sistema de duas fases quando a composição dos constituintes se encontrar acima de determinados valores.  A determinação do diagrama de equilíbrio de fases é a primeira etapa para caracterizar os sistemas bifásicos aquosos, pois contém informações das concentrações de PEG e sal necessário à forma­ção das fases, composição das fases em equilíbrio e previsão qualitativa da partição de moléculas.
Os diagramas de equilíbrio podem ser construídos empregando o sistema de coordenadas retangulares como também podem ser expressos em coordenadas triangulares, a diferença é que na forma retangular, a concentração do solvente, no caso a água, está implícita no diagrama.
As Figuras 3 e 4 mostram os dois tipos de diagramas.

Figura 3 - Diagrama de Fases ternário



Figura 4: Diagrama de fases expresso em coordenadas retangulares 

 
Convencionalmente, os componentes presentes nas fases inferior e superior são representados no eixo das abscissas e das ordenadas respectivamente. A curva que divide a região em duas fases (Fs, Pc, FI) é chamada curva binodal ou curva de equilíbrio e informa em quais composições globais o sistema é homogêneo e em quais é heterogêneo.
Uma mistura com a composição global representada pelo ponto G, como mostrado na figura , separa-se espontaneamente em duas fases, com composições representadas pelos pontos FS e FI, que expressam as composições das fases superior e inferior, respectivamente. A linha que une os pontos FS, G e FI é conhecida como linha de amarração, LA. Na figura são mostrados três sistemas com composições globais diferentes PI, P2 e G, localizados em linhas de amarração diferentes. Portanto, misturas de diferentes composições globais representadas por diferentes pontos na mesma linha de amarração originam sistemas bifásicos com composições idênticas, porém com diferentes volumes das fases coexistentes.
Quando um SAB é gerado de maneira que sua composição global situe no ponto médio da LA, a propriedade termodinâmica extensiva volume, das fases superior e inferior, serão os mesmos. No entanto, se um SAB for montado de maneira que sua composição global se encontre mais próxima à composição de uma das fases, haverá a formação de fases em equilíbrio, que terão volumes distintos. Para um sistema que tenha uma composição global mais próxima da concentração da fase superior, ocorrerá a formação de um SAB com uma fase superior tendo maior volume do que a fase inferior.
A linha de ligação, que descreve a composição das duas fases em equilíbrio é caracterizada por dois parâmetros: comprimento da linha de ligação (TLL, sigla inglesa de “tie-line length”) declive da linha de ligação (STL, sigla inglesa de “tie-line slope”):
O comprimento da linha de ligação é definido como:
 
        
 onde Ws,j, Wi,j representam a percentagem do componente j na fase superior e inferior, respectivamente.
O declive da linha de ligação é definido de acordo com a Equação:

Este parâmetro apresenta-se atualmente como uma característica importante dos diagramas de fases uma vez que o seu valor é geralmente constante, quando está presente um SAB de polímeros  e a sua avaliação, comparação com uma média para um dado sistema e nova medição para valores afastados dessa média é provavelmente o melhor método para obter diagramas de fases confiáveis.
Deve-se destacar que os polímeros sintéticos são geralmente polidispersos, podendo a distribuição das suas massas moleculares variar de lote para lote, mesmo quando obtidos do mesmo fabricante. Assim, a posição da binodal para um dado sistema não pode ser vista como uma constante físico-química do sistema.
 
3. Fatores que Influenciam no Sistema de Fases
 
Os principais fatores que influenciam no sistema de fases e consequentemente alteram o diagrama de fases são: a massa molar do polímero, a concentração dos componentes do sistema, o pH e temperatura, embora o fator mais importante para a separação das fases seja mesmo a natureza química dos polímeros.

  • Efeito da massa molecular dos polímeros
    A medida em que aumenta o peso molecular do PEG, as curvas tornam-se mais assimétricas e próximas da origem do eixo de coordenadas, requerendo-se menores concentrações para a separação das fases. Este comportamento é devido ao aumento do caráter hidrofóbico do PEG ao aumentar-se o peso molecular.

  • Efeito da temperatura
      Nos SABs compostos por dois polímeros, a concentração necessária dos mesmos para ocorrer a separação das fases é geralmente tanto maior quanto mais elevada for a temperatura. Assim, um aumento da temperatura origina que a binodal se mova na direção de concentrações mais elevadas, diminuindo o tamanho do comprimento da linha de ligação. Tal efeito é, no entanto, mais acentuado na zona próxima do ponto crítico, e esta deve ser a razão pela qual os sistemas parecem ter um declive diferente para composições próximas do ponto crítico, comparativamente a pontos afastados deste ponto. No caso SAB compostos por um polímero e um sal o efeito é contrário, isto é, o aumento da temperatura conduz a uma diminuição das concentrações de polímeros e sal necessárias ao aparecimento de duas fases.

  • Efeito do pH e tipo de cátion
O pH e o tipo de cátion também são variáveis que podem influenciar no diagrama de fases. Diminuindo o valor do pH, as concentrações necessárias de polímero e sal de um sistema PEG/sal aumentam, deslocando a curva binodal para a direita. Esse fato pode ser explicado pelo aumento da razão H2PO4-/HPO42-. Para o caso do fosfato, com a diminuição do pH, pois como o ânion monovalente é menos efetivo no “salting out” do PEG (fenômeno de expulsão devido ao tamanho do PEG), será necessária uma concentração maior dos componentes para formar o sistema bifásico. Porém esse efeito não é muito expressivo.
            No caso do tipo de cátion, a substituição de fosfato de potássio desloca a curva binodal para a direita, e portanto a concentração dos componentes necessária para a formação do sistema de duas fases aumenta, sugerindo que o cátion sódio é mais eficiente que o cátion potássio para o efeito do “ salting out” do PEG.

  • Efeito da adição de sais
O efeito da adição de sais nos sistemas varia com o sal e com o próprio sistema. Ao adicionar-se sal ao SAB, aumenta-se a área bifásica como resultado de um fenômeno de “salting out” do polímero originado pelo sal e um efeito de “exclusão” do polímero ao sal. Portanto, a adição de sais resulta no deslocamento da binodal no sentido das menores concentrações de PEG e Sal. Esse efeito aumenta com o aumento do peso molecular do polímero.

4. Partição em sistemas de duas fases aquosas
  
São muitas as variáveis que afetam a partição de um soluto em SABs. Dentre elas, podem ser citadas o tipo, a massa molecular e concentração dos polímeros que formam as fases; tipo e concentração de aditivos, pH e temperatura. Apesar destas variáveis serem todas mutuamente dependentes e ainda não completamente compreendidas, torna-se necessário fazer a análise dos efeitos de cada uma delas separadamente.

  • Efeito da composição do polímero

Num sistema polímero-polímero, o termo composição do polímero diz respeito a três variáveis diferentes. Assim, para cada um dos polímeros predominantes em cada uma das fases devem considerar-se o tipo ou estrutura química do polímero; a massa molecular e a concentração do polímero. A massa molecular não é considerada em SABs do tipo PEG-Sal.
Existem algumas regras que regem a influência do polímero em cada uma das fases:
Para composições de um determinado sistema, próximas do ponto crítico, o valor do coeficiente de partição é aproximadamente igual a 1. Tal deve-se ao facto de que o ponto crítico corresponde ao ponto em que, teoricamente, a composição das fases é semelhante, acontecendo o mesmo às suas propriedades.
 Aumentando a concentração total do polímero, o valor do coeficiente de partição afasta-se da unidade. Neste caso, as composições das fases em equilíbrio são substancialmente diferentes, aumentando a diferença entre as propriedades das fases, o que proporciona uma força motriz para o soluto migrar para uma fase em detrimento de outra.
Diminuindo a massa molecular de um dos polímeros aumenta a partição do soluto para a fase rica nesse polímero. Este efeito da massa molecular do polímero na partição do soluto não pode ser separado do efeito da concentração do polímero. Por outro lado, este efeito é tanto mais acentuado quanto maior for a massa molecular do soluto a separar.

  • Efeito da massa molecular dos componentes
Em um sistema PEG/sal, se a massa molar do PEG for elevado, a partição da proteína será mais favorável à fase salina. Caso a massa molar do PEG seja baixa, ocorrerá o oposto, sendo a partição favorável à fase polimérica. Isso ocorre provavelmente devido ao aumento do efeito do volume excluído que ocorre na fase PEG. Esse efeito é menor para substâncias de baixa massa molar. A massa molar da substância a ser separada também influencia em K, pois quanto maior for a molécula, maior será a área de contato que interage com os componentes do sistema e, de acordo com as características da molécula e com o tipo de interação, ela será mais favorável a uma das fases.
O coeficiente de partição diminui com o aumento da massa molar da proteína, principalmente para PEGs com baixa massa molar. O tipo de proteína também influi no valor de K, porque as proteínas são macromoléculas polieletrólitas que carregam cargas quando estão em soluções aquosas. As cargas dependem da composição, da seqüência de aminoácidos, e também das propriedades da solução aquosa, como o pH e a concentração dos solutos.

  • Efeito de aditivos de baixa massa molecular
A adição de solutos de baixa massa molecular quer iónicos (sais inorgânicos) quer não iónicos (ureia) afeta a partição de solutos nos SABs. Isto pode ser explicado por dois mecanismos distintos: um basea-se no efeito que o aditivo promoverá na composição e propriedades das fases, e o outro baseia-se nas alterações que o aditivo promoverá no soluto.
Quanto ao primeiro tipo de mecanismo, os dados existentes até ao presente não permitem diferenciar os efeitos dos aditivos nas propriedades das fases, dos efeitos nas propriedades de um soluto, e seria necessária mais informação experimental, incluindo estudos dos efeitos de aditivos em diagramas de fases e de várias propriedades físico-químicas das fases, para compreender o efeito.
O outro mecanismo ocorre quando, por exemplo, uma proteína, na presença de certos aditivos, poderá mudar de tamanho, sofrer alterações conformacionais ou ligar-se especificamente ao aditivo. Estas interações são altamente específicas, podendo alterar drasticamente o valor do coeficiente de partição.  A situação em que a proteína se liga especificamente ao aditivo é denominada por partição por afinidade. Utilizando esta técnica é possível particionar uma molécula biológica quase exclusivamente para uma das fases por integração de um ligando específico no SAB. O ligando é covalentemente ligado a um dos polímeros utilizados na formação dos SAB. Os ligantes aplicados à purificação de moléculas biológicas são, em grande maioria, corantes de triazina (por exemplo: Cibacron e Procion).

  • Efeito do pH
O efeito da variação do pH de um meio tamponado não pode ser facilmente diferenciado da adição de sais. Esta situação prende-se com o fato de ao variar o pH da solução, variar a razão entre a concentração dos sais com poder tamponante. Assim, podem ocorrer alterações nas propriedades do meio aquoso induzidas por uma dada variação de pH e/ou variação na composição do sal tampão correspondente. Por outro lado, moléculas como proteínas, peptídeos, entre outras, contêm uma grande variedade de grupos ácidos e básicos dependendo do pH do meio. O pH do meio altera, não só a carga superficial do soluto, como também induz alterações conformacionais do soluto, podendo ocorrer assim a associação e a dissociação de subunidades.
Trabalhando-se em um valor de pH próximo ao ponto isoelétrico (pI), onde a somatória de cargas da proteína é praticamente nula, existirá apenas o efeito do tamanho e concentração do polímero e do tamanho e composição da superfície da proteína, considerando-se apenas os efeitos eletrostáticos.

  • Efeitos das características do soluto
Os efeitos do tamanho do soluto (massa molecular) e da sua estrutura química são bastante difíceis de distinguir. A característica que influencia a partição do soluto é a sua estrutura química e não o seu tamanho. A influência da estrutura química da biomolécula parece ser explicada pela modificação (bio)química que a molécula pode sofrer, uma vez a partição é bastante específica, dependendo do tipo de biomolécula.

5. Tempo de Separação das Fases
  
O tempo de separação das fases após a mistura dos componentes depende do tipo de sistema. Sistemas contendo PEG/sal possuem um tempo de separação das fases muito menor que os sistemas PEG/dextrana devido à densidade e viscosidade do sistema. Em sistemas dextrana/ficoll, o tempo varia de 1 a 6 horas pela ação da gravidade, enquanto em sistemas PEG/dextrana esse valor cai para 5 a 30 minutos dependendo da concentração e da massa molar dos polímeros. Nos sistemas PEG/fosfato, o tempo de separação entre as fases é inferior a 5 minutos.
Outro fator que também influencia o tempo de separação é a velocidade de coalescência das pequenas bolhas que se formam durante a agitação. Quando se agita um sistema de fases de maneira a uniformizá-lo, inicialmente ocorre a formação de pequenas regiões ricas em cada componente. Com o tempo, essas regiões aumentam e separam-se em duas regiões distintas. A posição em relação ao ponto crítico também exerce influência no tempo de separação das fases. Nos sistemas próximos ao ponto crítico, o tempo de separação é maior devido a uma pequena diferença de densidade. Já no caso dos sistemas muito distantes do ponto crítico, a viscosidade aumenta devido ao aumento da concentração do polímero, tornando a separação de fases mais lenta.

6. Equação do Coeficiente de Partição

 Como o valor de K depende de diversos fatores, o desenvolvimento de um modelo para predizê-lo torna-se específico para um tipo de sistema ou substância. 
Podem existir, na partição de substâncias, cinco fatores diferentes que podem atuar separadamente (predominância de um fator em relação aos outros) ou em conjunto de acordo com o tipo de substância e do sistema de fases. São eles:
• Fator do tamanho, que existe quando a partição depende do tamanho da molécula ou da área superficial das partículas;
• Fator eletroquímico, que surge quando o potencial elétrico existente entre as fases do sistema é usado para separar as moléculas de acordo com a sua carga elétrica;
• Fator de afinidade hidrofóbica, que é a utilização das propriedades hidrofóbicas do sistema de fases para separar as moléculas em função da sua hidrofobicidade;
• Fator de afinidade bioespecífica, que utiliza a afinidade entre os locais da molécula como ligantes do polímero para a separação e fator de conformação, que é considerado quando a conformação da molécula é o fator predominante.
Esses fatores podem ser agrupados na seguinte equação:
 
ln K = ln K0 + ln Keletro + ln Kbioesp + ln Ktam + ln Kconf + ln Khifob 

Onde:
Keletro é o fator eletroquímico;
Khifob é o fator de afinidade hidrofóbica;
Kbioesp é o fator de afinidade bioespecífica;
Ktam é o fator do tamanho;
Kconf é o fator de conformação;
K0 é o valor inicial do K.

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